Ao menos 16% dos idosos no mundo são vítimas de diversos tipos de violência

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19/06/2017

Dona Marlene* conheceu o abuso ainda na juventude, quando se casou, aos 22 anos, em Cavalcante (GO). “Foi o fim da minha vida”, diz. Ela conta que sofreu todo tipo de ataque, incluindo sexual, por parte do ex-marido. O que não poderia imaginar era que, depois de conseguir se livrar do relacionamento e refazer a vida em Brasília, voltaria a sofrer agressões na velhice. Mãe de cinco filhos — um já falecido —, ela foi internada, contra a vontade, em um abrigo de idosos em Águas Lindas, no Entorno, há oito meses. “Minhas filhas pegavam meu dinheiro, pediam cheque assinado, usavam meu cartão. Uma delas me humilhava muito. Derrubou uma xícara de água fervendo em mim, saía jogando perfume onde eu passava, dizia que eu tinha cheiro ruim. Na vida, só recebi ingratidão.”
O caso de Marlene é a realidade de 141 milhões de pessoas com mais de 60 anos em todo o mundo. Um estudo inédito, apoiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e publicado na revista Lancet Global Health, revela que um em cada seis idosos sofre algum tipo de agressão. É uma proporção maior do que se imaginava. O trabalho, conduzido por pesquisadores da Faculdade Davis de Gerontologia da Universidade de Southern California, nos EUA, foi apresentado por ocasião do Dia Mundial de Atenção ao Abuso de Idosos, celebrado hoje.

A partir de dados de 52 estudos realizados em 28 países de diferentes regiões, incluindo 12 nações de baixo e médio nível de desenvolvimento, os pesquisadores concluíram que 16% dos idosos já foram submetidos a abuso psicológico (11,6%), financeiro (6,8%), físico (4,2%), sexual (0,9%) e a negligência (4,2%). Dados brasileiros ficaram de fora porque os cientistas não encontraram estudos nacionais com a mesma metodologia empregada nos demais.

Na região das Américas, o percentual de agressões a idosos é de 11,7%, variando de 10%, nos Estados Unidos, a 79,7%, no Peru. Na Ásia/Pacífico, chega a 20,2%, com variações de 14% (Índia) a 36,2% (China); enquanto que, na Europa, o índice é de 15,4%, variando de 2,2% (Irlanda) a 61,1% (Croácia). Também não havia estudos da África com metodologia adequada para a meta-análise, mas os autores do artigo destacaram que, entre as mais de 3,8 mil pesquisas consultadas, aquelas referentes ao continente africano também mostravam percentuais altos de agressões contra idosos.

“O abuso contra idosos está crescendo; para esses 141 milhões de pessoas, os custos individuais e sociais são altos”, disse Alana Officer, conselheira de saúde do idoso do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da OMS. “Temos de fazer mais para prevenir e responder à frequência crescente das diferentes formas de abuso”, alertou, em um comunicado à imprensa.
Despreparo

A psiquiatra Helena Moura, especialista em psicogeriatria e preceptora da residência de psiquiatria do Hospital de Base, destaca que, enquanto se fala bastante da violência contra outras minorias, como crianças e mulheres, quase nada é dito sobre o idoso. “Precisamos de políticas que comecem a orientar mais sobre a violência contra o idoso. As pessoas estão despreparadas, tratam o idoso de forma jocosa. Ele é motivo de chacota, como se tivesse chegado ao fim da linha. Você tem uma pessoa que foi produtiva e inteligente a vida toda e, de repente, se vê em uma situação de declínio, e a família pode não ter o esclarecimento de como lidar com isso”, avalia. De acordo com a médica, às vezes, mesmo sem perceber, muitas pessoas acabam humilhando os mais velhos, com brincadeiras e expressões que soam desrespeitosas aos mais vividos.

Helena Moura lembra que, diferentemente do que acontece com crianças, falta paciência dos mais jovens com os andares claudicantes, os esquecimentos e os embaralhamentos da mente dos idosos. “E esse abuso psicológico causa um impacto muito grande na saúde mental. Ele pode levar à depressão, uma doença que, no idoso, agrava mais ainda os aspectos cognitivos, como a lentidão do raciocínio e a capacidade de aprendizado reduzida”, diz a especialista.

O geriatra Otávio Castello, titular do Conselho dos Direitos do Idoso do DF e diretor de Ética e Defesa Profissional da regional da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, destaca que o estudo apoiado pela OMS encontrou percentuais expressivos de abuso em todas as regiões do mundo, independentemente de nível de desenvolvimento econômico. “O problema da violência contra o idoso é global. A média das pessoas pensa que é coisa de pobre. Não é, está distribuído por todas as classes e em todas as regiões”, diz.

Na avaliação de Castello, o estudo inédito é um referencial. “É o primeiro realmente estruturado, com dados do mundo todo, com base em artigos de boa qualidade de metodologia científica”, diz. “É um referencial para quem milita em direitos humanos e bastante coerente com a questão do idoso em geral: ele não tem voz. Combater o abuso entre todas as minorias é importante, mas essa, talvez, seja uma das menos olhadas.”

* Nome fictício a pedido da entrevistada
Projeções preocupam

Caso a proporção de abuso contra pessoas com mais de 60 anos siga no mesmo ritmo, serão 320 milhões de vítimas em 2050, estima a Organização Mundial da Saúde (OMS). “Apesar da frequência e das sérias consequências à saúde, o abuso de idosos continua sendo um dos tipos de violência menos investigados em pesquisas nacionais e um dos menos endereçados nos planos nacionais de prevenção da violência”, criticou Alana Officer, da OMS.

Segundo o geriatra Otávio Castello, o mundo está atrasado no debate sobre o tema. “Estamos vivendo um fenômeno, o da revolução da longevidade. Na história da humanidade, nunca estivemos com uma proporção tão alta de idosos”, lembra. Hoje, há 41 milhões de pessoas com mais de 60 anos e, de acordo com a OMS, em 2020, haverá mais idosos que crianças de até 5 anos. Até 2050, serão 2 bilhões de indivíduos nessa faixa etária, ou 20% da população mundial. “Ninguém olha para todas as questões relacionadas aos idosos. O estudo sintetiza que estamos diante de um problema global. Para reverter essa informação em políticas públicas, porém, é outra história”, lamenta.

José Elias Vieira dos Santos, voluntário no Lar da Terceira Idade Samaritanos, em Águas Lindas (GO), discorda da ideia de que a sociedade ainda não sabe como lidar com os idosos. “Não se envelhece do dia para a noite. O problema é que ninguém tem tempo para o idoso, ele não é priorizado, é deixado de lado. O descaso com o idoso é imenso”, diz. Ele conta que, muita vezes, precisa notificar as famílias, por meio do Ministério Público, para que visitem os parentes internos do abrigo. Além da negligência e do abuso financeiro e psicológico,  já presenciou casos de violência física, quando atuava como conselheiro no Conselho de Idosos do município. “Muitos eram espancados, chegavam com hematoma, marca de cigarro. E isso acontecia dentro das próprias famílias.” (PO)

Fonte: Correio Braziliense