Da roça à Sorbonne: a ex-doméstica que virou ministra

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18/03/2014

Neiriane Carvalho, 32, Roqsânia Teixeira, 28, e Celma Caixeta, 45, exibem seus diplomas de curso superior administração de empresas, letras e história, respectivamente. As duas primeiras são ex-empregadas domésticas. A terceira é diarista.

Elas têm em comum registros na carteira de trabalho, em diferentes períodos, feitos por uma mesma patroa: Delaíde Alves Miranda Arantes, ministra do TST (Tribunal Superior do Trabalho).

Celma, por exemplo, ajudou a criar as duas filhas da goiana de Pontalina (GO), a 120 km da capital e apenas 17 mil habitantes. A magistrada exibe no currículo que a fez chegar à mais alta corte da Justiça trabalhista do país cozinhar, limpar, lavar e passar em casas de famílias.

A doutora Delaíde vestiu a toga aos 61 anos, em 2011. Aos 15, ela colocava o avental para debutar no serviço doméstico, único modo de se manter na escola. “Minha mãe me arrumou um trabalho para eu poder custear os estudos. Comprar livro, caderno, roupa.”

O primeiro emprego da garota nascida em um 1º de Maio -o Dia do Trabalho- foi na casa de um gerente de banco. “Eu fazia de tudo, ajudava a cuidar da criança de três anos e da casa”, recorda-se Delaíde.

Sua rotina era sempre igual: preparava o café da manhã da família, ajudava a fazer o almoço, arrumava a casa. Depois de limpar a cozinha, passava roupa e ia embora a tempo de se arrumar para a escola à noite.

Um cotidiano bem conhecido de Francijane Nascimento, 41, que trabalha no apartamento da ministra em Brasília há um ano. “Falo pra Fran para ela não ficar muito entretida com o serviço e perder o horário. Ela precisa ter energia para estudar”, diz Delaíde.

Depois de 20 anos longe dos bancos escolares, a piauiense mãe de cinco filhos voltou a cursar, em fevereiro, o sétimo ano do ensino fundamental. “Dona Delaíde e seu Aldo [Arantes, ex-deputado federal, marido da ministra] me incentivaram, dizendo que querem que eu cresça e não fique nesse tipo de vida pra sempre”, conta Fran. “Antes, eu tava acomodada. Não pensava que a gente tem que ir pra frente.”

JORNADA TRIPLA

Com o empurrão dos patrões, que lhe pagam um salário de R$ 1.495, ela se matriculou em um programa noturno de educação para adultos na Ceilândia, cidade-satélite do DF onde mora.

Para dar conta da tripla jornada, Fran entra às 7h30 e sai às 16h da casa da ministra.

Delaíde, que teve papel ativo na aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) das Domésticas em 2013, define-se como uma patroa rigorosa. “Tenho uma relação de respeito com as empregadas lá de casa. Trato elas muito bem, mas gosto de tudo muito limpo. Como sei executar o serviço, sou exigente com a roupa lavada e com a limpeza.”

Ela chama as funcionárias de empregada. Não usa eufemismos como secretária ou ajudante do lar. Relata o passado de serviçal com naturalidade. “Encarava e encaro como um trabalho normal, digno.”

Vergonhoso, entende, é o reconhecimento tardio dos direitos trabalhistas das domésticas. Por isso, considera o ano passado histórico para a categoria, com a conquista de direitos básicos (como jornada de oito horas diárias), equiparando-se aos demais trabalhadores urbanos e rurais.

“Quem mais reclamou da redução da jornada é quem vai ao shopping e compra uma bolsa de R$ 3.000”, critica a ministra. “A chiadeira partiu de gente que usufruía do trabalho de uma babá por 15, 16 horas por dia.”

Autora do livro “Trabalho Doméstico – Direito e Deveres”, Delaíde foi convidada para uma palestra na Sorbonne, no último dia 6, com o título de “Os Desafios Brasileiros de uma Justiça Social Concreta”.

Conta ter deixado a plateia da universidade de Paris boquiaberta quando declarou que o mais crítico do trabalho doméstico em terras brasileiras ainda era a jornada desumana.

“Quando o tradutor verteu para o francês a introdução da minha fala, vi algumas pessoas pasmas. Como falar na Europa, em 2014, que uma categoria de 7 milhões de trabalhadores só teve a sua jornada limitada finalmente a oito horas, enquanto isso é garantido lá desde o Tratado de Versailles [assinado em 1919 ao final da 1ª Guerra Mundial]?”

ESCRAVIDÃO

No dia da promulgação da PEC no Senado, Delaíde estava lá como representante do TST. Uma senadora lhe perguntou: “Ministra, não é muito forte a gente dizer que é resquício da escravidão?”. Ela respondeu com a temperança de quem percorreu a longa distância entre o quartinho da empregada e a “casa grande”: “Senadora, é uma forma de expressar como esses direitos estão chegando atrasados.”

A magistrada rebate o discurso de que os empregados são tratados como “gente da família” em tantos lares brasileiros. “Tratar a funcionaria bem é questão de urbanidade inerente à relação de trabalho.”

O que importa, diz ela, é estabelecer regras para a relação patrão/empregado, como existe nas demais categorias. “A doméstica precisa ter tempo para estudar, para a família. Essa foi a principal conquista da nova lei.”

Por que houve tanta contestação? “Pois é”, inicia ela. “E justamente de setores mais abastados da sociedade, de quem tinha uma empregada só para um serviço que hoje precisam contratar duas ou três para fazer o mesmo.”

Ela reconhece que “haverá adequação” em alguns pontos da lei. “Questões que estão sendo vistas agora na regulamentação, como o caso das cuidadoras de idosos.”

CURSO SUPERIOR

Além da jornada, Delaíde defende o direito das domésticas à educação.

Em 2011, ela participou da aprovação da convenção 189, a norma internacional para a atividade doméstica, na OIT (Organização Internacional do Trabalho), em Genebra.

Levantou sua voz contra uma limitação: a de que bastava à categoria o profissionalizante. “Prestei um depoimento dizendo que cursar os ensinos fundamental, profissional e universitário me propiciou advogar 30 anos e integrar a Corte Superior da Justiça do Trabalho do meu país.”

SEIS QUILÔMETROS

Uma corrida de longa distância que exigiu fôlego e empenho de fundista. A primogênita de seu Valdivino, 85, e de dona Maria, 80, percorria seis quilômetros a pé por dia para ir e voltar até a escola na zona rural onde fez as quatro primeiras séries.

A menina da roça levaria 20 anos para conquistar o canudo de bacharel em direito. Na infância, só tinha uma certeza: “Eu não sonhava em ser médica ou advogada. Só pedia a Deus para poder estudar. Nunca me passou pela cabeça ser dona de casa”.

Os quilômetros percorridos na zona rural não a levaram tão longe em termos de aprendizado.

“Tive muitas dificuldades quando tentei fazer a quarta série na cidade e não acompanhei a turma. Voltei derrotada pra roça. Lembro de ter chorado muito.”

Não desistiu. Fez um ano de curso de admissão (uma espécie de vestibulinho) e finalmente ingressou no ginasial (como eram chamadas as quatro últimas séries do ensino fundamental) na cidade. “Comecei a estudar bastante, fazia aula particular com os colegas. Os professores percebiam o esforço e fui me superando”, recorda-se. “

Ganhou combustível para ir mais adiante. “Perto de terminar o ginasial, dizia pra mamãe: ‘Eu preciso ir para Goiânia, preciso recuperar o tempo perdido. Lá, vou estudar numa escola melhor.”

Mudou-se para a capital aos 18 anos. Matriculou-se no segundo grau para fazer o curso técnico de contabilidade.

Nos primeiros tempos em Goiânia, morava em uma república de estudantes e pagava a estadia fazendo o serviço de casa. “Arrumava e cozinha para os colegas, sete meninas e um rapaz.”

O arranjo durou seis meses, até ela arrumar um emprego de recepcionista e ir morar com uma prima.

CAMPO x CIDADE

O firme propósito de Delaíde de se educar foi a motivação primeira da mudança da família Miranda do campo para a cidade.

Seu Valdivino precisou ser convencido a deixar a lavoura de subsistência no pedaço de terra onde cultivava arroz, milho e feijão.

Delaíde -uma variação de Adelaide, nome escolhido pelo pai para homenagear uma amiga- contou com a ajuda de agentes da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) de Goiás. “Eles iam na roça ensinar técnicas de plantio e sempre falavam para papai: ‘Seus filhos são muito inteligentes, o senhor não pode deixar eles aqui, precisa levar essa meninada para estudar.”

Com 14 anos, Delaíde participou de um congresso no Rio de Janeiro, que reuniu jovens da zona rural de 22 Estados brasileiros e de 14 países da América Latina. “Fiz um discurso e lembro que disse que era preciso criar faculdade no meio rural.”

Dois daqueles agentes da Emater estavam entre os convidados de Delaíde na posse do TST, assim como os primeiros patrões, Hélio e Sueli. “Devo muito a essas pessoas. Assim como aos meus pais que sempre acreditaram em mim.”

Dois oito irmãos (o caçula morreu em um acidente de carro), quatro têm diploma de curso superior: dois são advogados, um é contador e outra bacharel em letras.

Todos eles estudaram em escolas públicas até o ensino médio. Finda essa etapa, havia um outro obstáculo a ser superado: como não conseguiram passar nos concorridos vestibulares das universidades públicas, tinham como única opção as particulares.

A ministra prestou cinco vezes o vestibular até passar em uma Uni-Anhanguera. A mensalidade correspondia a 60% do seu salário de recepcionista.

Valeu-se de um programa de crédito educativo, quitado com carência de 48 meses após a formatura.

NO TRIBUNAL

Delaíde chegou ao TST com uma bagagem de 30 anos de experiência em escritórios de advocacia na área trabalhista (hoje comandado pelas duas filhas, Patricia, 33, e Lorena, 31, também advogadas).

Em seu gabinete em Brasília, recebe uma montanha de 16 mil processos a cada ano. Em 2013, julgou cerca de 10 mil ações trabalhistas.

Ao contrário do prognósticos das madames e dos críticos da PEC das domésticas, Delaíde ressalta não ter havido até o momento uma explosão de demandas trabalhistas nem demissão em massa na categoria.

O que aumentou em 10%, segundo ela, foi a entrada de empregadas domésticas em universidades na última década. Neiriane foi uma delas. A administradora de empresas também saiu de Pontalina aos 15 anos para ir trabalhar e estudar em Goiânia. Dois anos depois deixava o serviço doméstico na casa de Delaíde para ser recepcionista no escritório da patroa.

Aos 28 anos, a mesma idade em que sua conterrânea ministra se formou, ela conquistou o próprio canudo.

“Dona Delaíde me incentivou o tempo todo e me ajudou até a pagar o cursinho vestibular”, relata Neiriane. Seu salário à época, um pouco mais que o mínimo, correspondia à metade da mensalidade da faculdade.

Conseguiu uma bolsa de estudo até a metade do curso, quando abandonou o sonho por falta de condições de bancar os custos. Foi quando Delaíde entrou em cena novamente e a chamou para morar em sua casa para economizar no aluguel e pagar a faculdade.

Foi o “sprint final”. “Sou a primeira pessoa da minha família a ter um diploma de curso superior”, diz Neiriane, que trabalha hoje na área administrativa e financeira de uma empresa de engenharia em Goiânia, com salário de R$ 2.000. “Minha história e a da ministra são muito parecidas. Ela me inspirou e me apoiou para alcançar meus objetivos.”

 A anotação como doméstica na carteira de trabalho é parte da vitória. “Serve para mostrar como venci na vida. Consegui meus estudos lavando, passando, cozinhando. É assim que o Brasil vai mudar, mudando a educação das pessoas.”

Delaíde se orgulha da própria trajetória e do exemplo de três de suas empregadas: “Incentivo todas elas a estudar e a buscar progredir sempre. Não só as domésticas, mas também meus motoristas. Eles não precisam necessariamente mudar de profissão, mas insisto que com estudo terão sempre mais oportunidades no mercado de trabalho e na vida”.

Fonte: Folha de S. Paulo.