Constituição 25 anos

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30/09/2013

 

AConstituição de 1988 completa 25 anos no dia 5 de outubro. Um ano e sete meses antes, foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte, em meio ao processo de transição democrática do país após 21 anos sob o regime militar. A Constituinte foi palco de intensos debates, conflitos, impasses e negociações entre várias forças políticas brasileiras. O Especial Constituição 25 anos vai relembrar e refletir esse importante período da história do Brasil.

Direitos da cidadania Art. 5º

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.(…) Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

Carta cidadã é realidade distante para minorias

Apesar dos avanços garantidos pelos direitos individuais, Constituição ainda não é aplicada de forma igualitária para todos os brasileiros

A afirmação da dignidade humana como valor constitucional, por meio da garantia de uma série de direitos individuais, é unanimidade na análise sobre os avanços surgidos com a Constituição de 1988. Após duas décadas de ditadura, a conotação humanista e democrática da chamada Carta Cidadã é destacada. Passados 25 anos, o seu legado é comemorado, mas, segundo especialistas, os direitos ainda precisam ser garantidos a todos. Para eles, alguns grupos, como presidiários, moradores de favelas e índios, aguardam para ter suas prerrogativas reconhecidas, embora a Constituição diga que ninguém será submetido a tratamento desumano e degradante. Porém, os presídios estão superlotados: há 548 mil presos para 310 mil vagas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

— A partir da Constituição de 1988, não é só o governo que importa. Homens e mulheres foram igualados, as ideologias passaram a ser respeitadas, a união estável entre homem e mulher foi reconhecida — observa o professor de Direito da PUC-SP Gilberto Haddad Jabur.

— Ainda hoje é como se o direito não valesse para todos. A desigualdade persiste, ainda que a Constituição se preocupe muito com a igualdade — diz Daniel Sarmento, procurador da República e professor da Uerj. — Nos presídios, dignidade é história da carocinha. E o direito da minoria não pode depender da maioria. Se a sociedade acha que os presos não têm direitos, o Judiciário tem que agir.

Para o constitucionalista Ragner Vianna, a Carta foi uma “conquista histórica” em relação à igualdade:

— A Constituição só se preocupava com o poder do Estado em relação ao particular. Em 88, passa a se preocupar com os direitos particulares. Antes, o mais forte tinha chance de explorar o mais fraco. Agora, as relações se tornaram mais equilibradas. No entanto, sabemos que ainda há privilégios. Todos devem ser tratados de forma igual pela lei. Mas, por exemplo, não é a lei que vai garantir salários iguais para homens e mulheres. A imposição legal não vai resolver a questão.

O jurista Dalmo Dallari diz que a Carta afirmou os direitos humanos em dupla perspectiva: além das garantias individuais, foram incluídos os direitos sociais, econômicos e culturais. Destaca ainda as formas de participação franqueadas à população: além das emendas populares submetidas à Constituinte, a Carta permite projetos de lei por iniciativa popular.

— Hoje, temos dois exemplos muito expressivos da importância dessa inovação: um deles foi a Lei Maria da Penha e o outro, a Lei da Ficha Limpa — afirma Dallari, citando como pontos relevantes a criação da Defensoria Pública e do Ministério Público.

“Falta muito para atingir o ideal”

Foi também a Constituição de 1988 que transformou o racismo em crime inafiançável:

— A lei veio para botar freio. Se formos medi-la pela sanção, podemos deturpar a realidade achando que muitas pessoas não são presas. Mas será que o racismo continua sendo praticado do mesmo jeito que era antes da Constituição? Estamos longe do ideal, mas houve avanço.

Universitária, Abigail Ekanola, de 19 anos, nasceu quando o racismo já era considerado crime inafiançável, mas conta ter crescido sendo chamada de “macaca” e “cabelo duro”. Única negra de sua turma de Direito, lembra que uma professora criticou as cotas raciais na sala de aula, pois permitiriam que “estudantes sem capacidade entrem na universidade e se tornem péssimos profissionais”:

— A Constituição é linda, mas falta muita coisa para atingir o ideal. Acho que ficaram mais quietos por causa da lei, mas creio que diminuiria muito o racismo se as pessoas passassem a nos enxergar como capazes.

Mudanças aconteceram também dentro de casa. Desde 1988, casais heterossexuais podem assinar contrato de união estável. Foi o que fizeram o arquiteto Odilon Terzella e a empresária Sandra Vergara, juntos há mais de 25 anos.

— A burocracia para casar nos desanimava. Começamos a pensar que união estável era mais prático e queríamos uma prova de que construímos uma vida juntos — conta Sandra.

O STF reconheceu o mesmo direito aos homossexuais, mas sem haver emenda constitucional. Ainda que a lei esteja na Constituição, isso não garante que a conduta será respeitada e a norma, aplicada. Um exemplo é o levantamento do CNJ sobre superlotação e insalubridade nos presídios. Mensalmente, o setor de fiscalização do sistema carcerário e de execução de medidas socioeducativas do CNJ recebe, em média, 245 reclamações e denúncias, até de tortura.

— Ainda há claro descumprimento de direitos dos presos. Prevalece uma mentalidade associada ao olho por olho, dente por dente. A gente precisa avançar; diante de condições desumanas em que essas pessoas vivem, elas saem das prisões pior do que entram e voltam a cometer crimes — avalia o conselheiro do CNJ Guilherme Calmon.

Constituição Cidadã e desigualdade

Por Daniel Sarmento – Procurador-regional da República e professor de Direito Constitucional da Uerj

O país tem boas razões para celebrar os 25 anos da Carta de 1988, a “Constituição cidadã”, nas palavras de Ulysses Guimarães. Afinal, trata-se de uma Constituição democrática, que tem como preocupação central a proteção e promoção dos direitos fundamentais. E, diferentemente do que ocorreu com as nossas constituições anteriores, esta possui razoável eficácia social. Desde a sua promulgação, vêm ocorrendo eleições livres e regulares no país; a oposição e a imprensa desfrutam de liberdade; as crises institucionais são equacionadas seguindo as “regras do jogo”; e instituições como o Poder Judiciário e o Ministério Público funcionam com independência. Ainda mais importante, a cidadania se apropriou do discurso constitucional e aprendeu a reivindicar seus direitos, nas ruas e nas Cortes.

Porém, a Constituição de 1988 não tem sido suficiente para equacionar o mais grave dos problemas nacionais: a nossa crônica desigualdade. Esta se manifesta de múltiplas formas em nosso cotidiano, como na violência simbólica das relações de emprego doméstico; nas “masmorras medievais” em que são trancafiados pobres e pretos; nas nossas diferenças sociais vergonhosas; nas “carteiradas” e na impunidade da elite. No Brasil, como na Fazenda dos Bichos de George Orwell, todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.

A culpa disso não é, certamente, da Constituição. A Carta de 1988 é igualitária e tem respaldado avanços importantes neste campo, como o reconhecimento da união homoafetiva e da legitimidade das políticas de ação afirmativa para pobres e negros. Porém, a persistência de uma cultura social fundada na desigualdade sabota a Constituição, na medida em que naturaliza ou torna invisíveis as violações de direitos dos grupos mais vulneráveis.

Essa cultura chancela a existência de verdadeiros quistos de estado de exceção no interior do estado de direito. Nos bairros de classe média, por exemplo, vigora a inviolabilidade do domicílio; já nas favelas vale a “lei do Capitão Nascimento”. A liberdade de expressão protege os artistas consagrados e os veículos de comunicação, mas jovens manifestantes, bailes funk e rádios comunitárias são tratados como casos de polícia. Enfim, a Constituição de 88 tem incontáveis virtudes, mas é urgente estender a todos o alcance dos seus princípios civilizatórios, superando as hierarquias que ainda impregnam as nossas relações sociais.

Texto atual é 39% maior do que o aprovado em 88

Crescente Pesquisa mostra que 718 dispositivos foram incluídos e 80 retirados da versão original; última mudança ocorreu em junho deste ano

A Constituição chega aos 25 anos 39% maior do que quando foi promulgada, em 1988. Levantamento obtido pelo GLOBO revela que, desde a primeira emenda constitucional, em 1992, até a Emenda 73, de junho passado, foram acrescidos 718 dispositivos e retirados 80 do texto original, que já contava com 1.627 dispositivos. O saldo, de 638 dispositivos, mostra como a Carta não para de crescer.

O estudo foi realizado pelos cientistas políticos Cláudio Couto (FGV) e Rogério Arantes (USP). O documento e suas emendas foram esquadrinhados e divididos em dispositivos, uma unidade de medida, para apontar o crescimento e o perfil da Constituição. O trabalho recebeu prêmios no Brasil e no exterior e foi atualizado com as últimas emendas para O GLOBO.

— Não há dúvida de que temos uma Constituinte permanente. E isso ajuda a explicar como ela se tornou longeva — diz Couto, lembrando que o país já teve outras seis Constituições e só duas no regime democrático: a de 1946 durou apenas 18 anos.

Segundo os pesquisadores, o modelo da Constituição brasileira é marcado por dispositivos que versam sobre políticas públicas e esta é a principal explicação para que ela seja permanentemente modificada. Pela pesquisa, 30% dos dispositivos da Constituição de 88 tratam dessas políticas. Assim, a Carta é uma “grande lei ordinária do país”, segundo os especialistas.

— Há um estudo que mostra um censo de todas as Constituições que vigoraram no mundo. Fizeram uma análise epidemiológica constatando que a mediana de vida de uma Constituição é de 19 anos. Então, há motivos para comemorar, porque já ultrapassamos isso. Eles analisaram ainda quais fatores explicam a longevidade e os fatores são os que temos no Brasil: uma Constituição extensa e detalhada, relativamente fácil de mudar e inclusiva, no sentido de atrair os atores a participar de sua própria reelaboração — explica Arantes.

Ele frisa que a Constituição dos Estados Unidos, que vigora desde 1787, com apenas 27 artigos, é um caso à parte:

— A Constituição americana é uma exceção até lá. Lá, quando se vai para o nível estadual, as mais duradouras são as mais prolixas. As mais parecidas com a Constituição Federal americana não duraram. Por isso, ela é completamente atípica, mesmo comparada com os outros países — explica Couto.

Ele cita ainda efeitos da Constituição no sistema político. Para Couto, uma das razões das coalizões serem maiores, desde o governo Fernando Henrique, é garantir a mobilização do Congresso em torno das emendas de interesse do governo. Por seu caráter majoritariamente de políticas públicas, que versam do sistema de Saúde ao uso de precatórios, os governos se empenham para adequar a Carta a seus projetos.

Segundo os pesquisadores, apesar das incessantes propostas de emenda constitucional no Congresso, a Constituição não foi desfigurada no que diz respeito à garantia de direitos.

— Os direitos não ficam sob risco. Se olharmos historicamente, entre todas essas emendas, nenhuma diminuiu direitos. Mesmo a da Previdência Social, que é muito mais de ajuste contábil. Ela é considerada Constituição Cidadã porque já nasceu criando direitos.

Com uma Constituição que não para de crescer, e que tem facilidade de ser modificada, eles consideram a proposta do ex-presidente Lula e do PT de uma Constituinte exclusiva para a reforma política “fadada ao fracasso”:

— Os atores envolvidos têm muito receio de embarcar nessa ideia porque, na medida em que você instala uma Constituinte, não só o tema específico como os outros poderão ser objeto de revisão e negociação. O custo pode ser muito alto dado o risco de tudo ser revisto — diz Arantes.

*A repórter viajou a convite da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs)

 

Fonte: O Globo