Morte e servidão na rota de uma Copa

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20/11/2013

Éprovável que o presidente da Fifa, Joseph Blatter, ainda venha a ter saudades dos percalços envolvendo a Copa do Mundo no Brasil. Atrasos nas obras, black blocs no caminho, vaias a persegui-lo, infraestrutura capenga e surpresas indigestas de última hora parecerão exóticos recuerdos tropicais quando comparados à penca de problemas com Qatar 2022.

Ainda faltam nove longos anos para o Mundial naquele emirado desértico do Golfo Pérsico, com uma Copa inteira — a da Rússia em 2018 — no meio do caminho. Mas é para o Qatar que apontam as aberrações mais cabeludas, com duras críticas e cobranças mundiais por uma posição oficial da Fifa.

“Minha avó sempre dizia que um relógio de pêndulo faz ding-dong, não din-ding-ding”, declarou Blatter em Abu Dhabi antes de seguir para o Qatar no fim de semana passado. “De jornalistas e críticos eu só tenho ouvido ding. Agora vou lá [para Doha, capital do emirado] para ouvir também o dong.”

O encontro com o xeque Tamim bin Hamad al-Thani, o novo emir empossado cinco meses atrás, estava agendado como “visita de cortesia”. Coincidiu com a passagem pelo país de uma missão de direitos humanos da ONU que foi inspecionar as condições de vida e de trabalho a que é submetida a mão de obra estrangeira, que representa 85% da população do emirado. O Qatar, que já é o país com maior proporção (e necessidade) de trabalhadores migrantes, terá essa carência duplicada pelas obras da Copa.

Denúncias veiculadas pelo jornal britânico “The Guardian” em setembro e desmentidas pelas autoridades locais haviam revelado um quadro duplamente aterrador para um país que ostenta o segundo PIB per capita mais alto do mundo (US$ 104,754 em 2012) e uma invejável colocação entre as nações com Índice de Desenvolvimento Humano muito alto. Mas este Qatar retrata apenas seus 225 mil cidadãos de sangue, não o estimado 1,8 milhão restante da população que para ali migra como trabalhadores sem direitos. E que ali construirão o estratosférico Mundial de 2022 a um custo até agora estimado em US$ 134,5 bilhões (R$ 311,6 bilhões).

À falta de estatísticas oficiais, entidades como a Confederação Sindical Internacional, que representa 174 milhões de trabalhadores de 156 países, e a Human Rights Watch, além da equipe investigativa do próprio “Guardian”, fizeram um levantamento sobre as horas de trabalho abusivas, a ausência de proteções legais, as temperaturas escaldantes nos alojamentos sem ventilação, o alarmante número de jovens migrantes que chegam saudáveis e morrem pouco depois.

Deve ter sido esse balanço de mortes só nos dez primeiros meses de 2013 que levou a missão da ONU a desembarcar em Doha: só desde janeiro de 2013, seriam 83 mortos entre os que vieram da Índia, 119 chegados do Nepal e 202 migrantes de outros países. Conclusão: a cada dia do ano morre pelo menos um trabalhador migrante por condição insalubre, desidratação, subnutrição, doença não tratada, ataque cardíaco ou acidente de trabalho.

No Qatar, assim como em várias monarquias petrolíferas da região, trabalhador e patrão estão vinculados pelo sistema da kafala, que deriva da lei islâmica sobre adoção de crianças. Proibido de mudar de emprego sem o consentimento do patrão, o migrante descontente com sua situação tampouco pode sair do país sem primeiro obter um visto de seu empregador. Na prática, isso significa que em caso de litígio ou quebra de contrato o trabalhador que pretender buscar seus direitos dificilmente conseguirá seu visto — a menos que desista de exigir o que lhe é devido.

É o caso do jogador de futebol franco-argelino Zahir Belounis, cause célèbre do momento da Human Rights Watch, do Sindicato Mundial dos Jogadores de Futebol (Fifpro), da Confederação Sindical Internacional e das redes sociais.

Belounis atuava num time da Terceira Divisão da Suíça quando recebeu convite para jogar no Qatar. Aceitou correndo e jogou por três anos pelo Military Sports Association, da Segunda Divisão catariana. Em 2010 recebeu contrato até junho de 2015, que incluía casa alugada, carro e salário mensal decente. Era o capitão do time quando a equipe chegou à Primeira Divisão e passou a se chamar El Jaish Sports Club e alegrou-se ao saber pela internet que o clube receberia o reforço de um brasileiro (Adriano) e um argelino. A alegria parou aí.

A partir daí caiu num limbo que não entende até hoje. Informado de que seu contrato seria mantido, foi rebaixado para outro time, da Segunda Divisão. Não gostou, mas foi. Quem não o acompanhou foi o salário. Esperou, pediu, cobrou, implorou. Nada. Está há 27 meses sem receber um riyal. Está com 33 anos, casado e com duas filhas pequenas que, segundo ele, “não entendem o que está acontecendo aqui em casa”. Decidiu abrir processo na Corte Administrativa de Doha com pedido de indenização, também sem efeito.

Em junho, pela primeira vez, Belounis sentiu-se amparado por um encontro de vinte minutos com o presidente de seu país, François Hollande, que fora a Doha inaugurar um liceu francês. “Mantenha-se firme”, disse-lhe Hollande na ocasião, prometendo uma solução. Passados cinco meses a firmeza do jogador se esfarelou.

“Muitas vezes fico deitado na cama e choro como uma menina”, contou Belounis ao repórter da revista alemã “Der Spiegel”, que o visitou no mês passado.

Entregara os pontos.

Em carta aberta enviada esta quinta-feira a dois dos mais vistosos e bem remunerados embaixadores pró-Qatar 2022, Pep Guardiola e Zinedine Zidane, Zahir Belounis fez um apelo. “Vivo um pesadelo devido a um sistema que está me matando lentamente”, diz a carta. “[…Se o Qatar não acabar com esse sistema haverá centenas, talvez milhares de pessoas aprisionadas aqui.”

E se o país-sede da Copa não reformar ou eliminar as atuais condições de trabalho para a mão de obra migrante, corre o risco de vir a ter mais operários mortos na construção do espetáculo do que jogadores competindo no espetáculo.

Fonte: O Globo